Em artigo publicado em 1º de setembro deste ano (1), ao criticar o fato de que no Brasil perde-se demasiado tempo discutindo assuntos de menor importância e protelando sempre o que é essencial, eu citava quatro temas como exemplos de “providências que aparecem bem nos discursos mas ficam, como sempre, pelo caminho”: a) privatização, b) corte de subsídios e/ou renúncias fiscais, c) reforma administrativa e d) reforma tributária.
Em seguida, dias 19/10/20 e 09/11/20, publiquei, respectivamente, os artigos “Reforma administrativa: panaceia ou solução?” e “A reforma tributária é prá valer?”, comentando dois dos quatro temas citados no parágrafo anterior. Agora, para finalizar, faço alguns comentários sobre os itens a) e b).
Ainda no período eleitoral, o agora ministro Paulo Guedes, fez corretas (embora exageradas) observações a respeito da necessidade de se instalar um programa concreto de privatizações – imprescindível para diminuição da dívida pública e de dispêndios com empresas federais “dependentes” do Tesouro Nacional - e de se fazer uma revisão profunda nas renúncias fiscais/tributárias, cujas eficácias ele considerava discutíveis. Abordemos, inicialmente, o programa de privatizações.
De acordo com apresentações feitas pelo então titular da Secretaria Especial de Desestatização e Desinvestimento do Ministério da Economia – SEDDM (2), senhor Salim Mattar, das 134 empresas estatais federais (88 sob controle indireto e 46 sob controle direto), 18 são dependentes do TN que, juntas, custam ao governo cerca de R$ 20 bilhões por ano. Além disso, a privatização ainda contemplava mais de 750 mil imóveis que estavam sob responsabilidade direta do governo federal!
Embora o ministro sempre tenha defendido a privatização de todas as estatais federais, o programa do governo (3) exclui Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e mais oito empresas de menor porte: Amazul, CPRM, Ebserh, Emgepron, Embrapa, GHC, HCPA e Imbel (4). Apenas para se ter uma dimensão do ‘tamanho’ do programa de privatizações, os cálculos preliminares estimavam que o valor total poderia alcançar o valor de R$ 920 bilhões (14% do PIB ou 27% da Dívida Líquida do Setor Público de 2017).
Mesmo considerando que muita resistência, do Congresso, da sociedade e de gente do próprio governo pudesse ser encontrada para a instalação desse programa, o ministro acreditava na possibilidade de se alcançar, com as vendas, cerca de R$ 450 bilhões. Um bom dinheiro, sem dúvida.
Lamentavelmente, mesmo com o apoio de Bolsonaro no período da campanha política, e nos seus primeiros meses de governo, o que se notou é que, até por sua carreira política, estatizante e distante do liberalismo pregado, o presidente desistiu da ideia e não fez os esforços que dele se esperava. Resultado: renúncia do secretário do programa de desestatização e ‘zero’ de privatização.
Como escreveu a economista e jornalista Elena Landau (“#Privatizatudo: do meme à realidade”) para o Estadão de 31.08.2018 (5): “Privatização é coisa séria, não combina com bravata eleitoral”.
Um dos fortes argumentos para a privatização de empresas públicas, é a de que ao governo cabe cuidar da segurança, da saúde, da educação e da infraestrutura e deixar para o setor privado, de maior produtividade, as demais atividades econômicas. Com consequente diminuição da participação do Estado na economia, seria possível diminuir os gastos públicos e focar, com qualidade e eficácia, as atividades ‘sociais’ e ainda evitar, de forma bastante significativa, o uso político dessas empresas e a corrupção.
Por outro lado, e sempre existe um outro lado, muitos argumentam que há um conjunto de atividades econômicas que, por não interessarem ao setor privado, e outras de caráter eminentemente social, precisam ser exercidas pelo Estado.
Vejamos o exemplo dos bancos. Em palestra realizada no Corecon (Conselho Regional de Economia / SP), dia 09.06.2020, o economista e ex-diretor do DIEESE Sérgio Mendonça, ao discorrer sobre a importância dos bancos estatais em países como os EUA, Alemanha, França e Coreia do Sul, mostra pesquisa que indica que no Brasil, enquanto os bancos estatais representam 40% dos ativos do sistema bancário, 50% das operações de crédito e 43% das agências, a participação no total do lucro dos bancos de 2018 foi equivalente a 30%. Como base nisso, Mendonça argumenta que o fato de ter taxas de rentabilidade menores do que os bancos privados, explica as condições de sustentabilidade e de participação nas políticas sociais dos bancos públicos, inclusive com participação majoritária nas concessões de créditos imobiliários, investimentos em infraestrutura, agrícola e à exportação (6). Além do que evidencia o fato de que os bancos privados, ao buscarem lucratividade, operam muito mais nas regiões mais desenvolvidas e de maior renda, e nunca o contrário (7). Não há dúvidas, neste momento de pandemia, não só os bancos públicos são aqueles que mais socorrem a economia (8), como também as políticas governamentais diretas, como foi o caso dos planos de emergência que, de fato, ao ajudar os mais carentes e as micro e pequenas empresas, atenuou sobremaneira os impactos recessivos da política de isolamento e distanciamento social.
O problema é que discussões sobre privatização, além do carácter ideológico de sempre (Mercado X Estado), também incorporam as circunstancias do momento e, atualmente, aproveitar os recursos das vendas dos ativos públicos para diminuir gastos, gerar superávits primários e diminuir a dívida pública, parecem ser os principais objetivos deste governo. A próxima eleição para presidente, inevitavelmente, deverá colocar novamente o assunto em pauta, pois no momento, a desconfiança com relação ao executivo federal, a falta de transparência e os objetivos ‘difusos’ na tomada de decisões, bem como o ‘tamanho’ da crise, que só cresce, impedem que se discutam esses assuntos de forma correta.
Já com relação à necessidade de se rever todo o conjunto de benefícios, subsídios e renúncias fiscais existente, vale destacar algumas informações obtidas diretamente do site da Secretaria Especial de Fazenda do Ministério da Economia. O relatório foi atualizado em 03/08/2020.
Nos últimos 17 anos (de 2003 a 2019), em valores de 2019, o total de recursos da União destinados à conta “Subsídios”, foi de R$ 5,1 trilhões. A média anual, por volta dos R$ 297,5 bilhões, equivale a 4,76% do PIB. Em 2003, primeiro ano do governo Lula, o total de subsídios representava 3,0% do PIB, vindo a subir sistematicamente até alcançar o ‘pico’ em 2015 (governo Dilma), com 6,7% do PIB. Em 2018, último governo de Temer, o percentual foi de 4,61% do PIB e no primeiro ano do governo Bolsonaro o percentual subiu novamente para 4,8%. Em 2019 esses recursos alcançaram o valor de R$ 348,3 bilhões!
A conta denominada ‘subsídios’ inclui três tipos diferentes: Financeiros (9,5% do total), Creditícios (13,7%) e Tributários (76,8%). Dentre os 10 maiores (cerca de 75% desse total de R$ 348,3 bilhões), 9 são tributários e apenas 1 creditício. Os dez maiores de 2019, pela ordem, foram: Simples Nacional (R$ 75,9 bilhões), Desoneração da Cesta Básica na Agricultura e Agroindústria (R$ 32,3 bilhões), Rendimentos Isentos e Não Tributáveis do IRPF (R$ 31,7 bilhões), Isenção de Entidades sem Fins Lucrativos (R$ 28,5 bilhões), Isenções da Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio (R$ 22,2 bilhões), Deduções do Rendimento Tributável do IRPF (R$ 21,7 bilhões), Isenções em medicamentos e produtos farmacêuticos e equipamentos médicos (R$ 13,8 bilhões), Benefícios ao Trabalhador (R$ 12,5 bilhões), Fundos Constitucionais de Financiamento (R$ 11,3 bilhões) e Desoneração da Folha de Salários (R$ 9,8 bilhões).
Coincidentemente a reporte especial do Estadão, em Brasília, Adriana Fernandes, publicou artigo a respeito dia 06 pp: “Coragem para cortar”. Considerando que há tantos interesses envolvidos, inclusive daqueles que defendem o “liberalismo econômico puro” desde que mantidos seus benefícios, a definição do que, como e quanto cortar passou a ser um grande problema.
Não há dúvidas, qualquer 10% ou 15% de corte nesses benefícios produziria um montante razoável de economia para os cofres públicos. Entre R$ 35 bilhões e R$ 52 bilhões por ano, considerando o PIB de 2019.
É óbvio que seria necessário mexer com setores empresariais importantes e pessoas físicas influentes. Para que se tenha uma ideia, somente com seis contas (Simples Nacional, Isenções, não tributações e deduções permitidas na declaração do IRPF, Zona Franca de Manaus, Isenções ou imunidades das Entidades Sem Fins Lucrativos e Desoneração da Folha), chega-se a 54,5% do total, ou seja, R$ 190 bilhões em 2019. Mas, interessantemente, embora material de discursos e propagandas eleitorais, nada mais se fala a respeito atualmente. E para esquentar o debate, completa Adriana, o “presidente Jair Bolsonaro acabou de assinar um decreto tornando permanente em 8% o benefício fiscal a concentrados de refrigerante produzidos na ZFM e que favorece grandes fabricantes, como a Coca-Cola e Ambev”.
Para 2021, segundo o PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual), que tramita no Congresso Nacional com o número 28/2020, em apenas nessas seis rubricas por mim comentadas e adicionando-se R$ 5,9 bilhões para o setor automotivo e R$ 4,5 bilhões para embarcações e aeronaves, o total de renúncia fica acima dos R$ 193 bilhões.
O fato, como comentou o secretário da Secap (Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria) do Ministério da Economia, em estudo apresentado em seminário do Banco Mundial (maio de 2019), e reportado pela jornalista Idiana Tomazelli do Estadão (artigo publicado dia 06/06/2019), é que “diferentemente dos outros países analisados, encontramos fortes indícios de que a política de renúncia tributária feita pelo governo federal entre 2003 e 2015 comprometeu a arrecadação de tributos federais” e não estimulou a atividade econômica como se esperava.
Não se defende aqui, o simples corte nos subsídios sem que existam critérios claros, racionais e objetivos, nem tampouco que sejam mantidos ‘intocáveis’, como defendem alguns (9), mas é preciso reavaliá-los, assim como a Administração Pública, o papel do Estado, o sistema Tributário e as Privatizações. Embora ‘pregado’ pelo atual governo como prioridades, essas ‘reformas’ não foram levadas à diante, nem tampouco devida, cuidadosa e concretamente discutidas.
Em artigo pulicado por mim no dia 01/09/20 – e que deu início a esta série de quatro artigos consecutivos e complementares -, ao constatar que a pandemia continuaria fazendo vítimas e seu fim, bem como seus impactos negativos ainda estariam longe de serem alcançados, eu concluía que tudo tenderia a se agravar, posto que em 2021 o auxílio emergencial (10), caso não haja uma solução racional, técnica e também política, terminará. Escreveu o diplomata Rubens Ricúpero (11), em excelente artigo de setembro pp, “o aparecimento de um novo ator social e político tem sempre efeito desestabilizador. Assim sucedeu na Europa da Revolução Industrial, com as revoluções de 1830, 1848, da Comuna de 1871. Entre nós e no resto da América Latina não será diferente: não haverá paz, estabilidade, retomada do desenvolvimento sem a integração progressiva do novo ator como cidadão, produtor, consumidor, agente de cultura (grifos meus).
Infelizmente, como já escrito, o Presidente da República (12) não demonstra de forma concreta que irá, pelo menos, tentar dar andamento à essas reformas estruturais (assuntos acima de tudo políticos), e muito menos buscar a compatibilização de um imprescindível e justo programa de transferência de rendas com o necessário equilíbrio das finanças públicas. Pelo contrário, ocupando-se prematuramente de sua reeleição, continua no palanque e adotando posturas populistas da pior espécie. Observação: as palavras ‘imprescindível’ e ‘necessário’, utilizados aqui, são pertinentes e explicam, segundo meu entendimento, prioridades.
O tema para 2021 do Fórum Econômico Mundial é o chamado “Capitalismo Consciente”, momento no qual as empresas conseguem compatibilizar lucros para os acionistas e aumento do bem estar para a sociedade. A grande ‘sacada’ para 2021 será construir as bases de um sistema econômico e social, mais justo, sustentável e resiliente, posto que há a necessidade de se celebrar um contrato social “centrado na dignidade humana, justiça social e onde o progresso social não fique atrás do desenvolvimento social”. Geração de riqueza com inclusão social.
Embora com forte conteúdo técnico, as decisões com relação às reformas administrativa e tributária e aos programas de privatização e de renúncias fiscais/tributárias, são eminentemente políticas, exigindo, portanto, discussão democrática, sem pré-conceito ideológico e que tenha como objetivo principal, resolver alguns dos principais problemas do Brasil que já se arrastam a tanto tempo. Fundamental e imprescindível que essa discussão seja realizada em um ambiente no qual se pratique valores do capitalismo consciente. E para isso é preciso, com humildade, conhecimento e honestidade, ter a participação de homens e mulheres, do setor público e privado, civil e militar, buscando um só objetivo: o bem do Brasil e dos brasileiros. Difícil né?
Ainda, segundo dados apresentados pelo economista Sergio Mendonça: 40% dos municípios brasileiros (+/- 2000) não tem agência bancária, apenas postos avançados; 6,7% não tem sequer postos avançados. 950 municípios só tem agência de banco público (estudo de 2016 do prof. Fernando Nogueira da Costa, da Unicamp).
Com base nos conceitos, empréstimo irriga o mercado com dinheiro, enquanto depósito retira (suga dinheiro do mercado), isto é, quando o banco suga (tem mais depósitos à vista do que geração de créditos), ele mais tira do que põem dinheiro no município ou na região e quando irriga (tem mais crédito do que depósitos), ele põem dinheiro do que tira, as estatísticas são as seguintes: CEF: em 1600 agências ele irriga e em 8 ele suga; BB: suga em 75 e irriga em 2865; Bradesco: suga em 2140 e irriga em 138; Itaú: suga em 1005 e irriga em 126; Santander: suga em 570 e irriga em 160. Somente na região Sudeste é que os bancos privados irrigam mais do que sugam.
Dados divulgados pelo Estadão indicam que o Banco do Brasil foi responsável por 36% de todos os empréstimos do Pronampe, programa específico para apoio às micros e pequenas empresas. As pequenas e micro empresas empregam 52% dos trabalhadores com carteira assinada no país. O segundo maior ‘emprestador’ desse programa foi a Caixa Econômica Federal, com 26% e em seguida o Banco Itaú, com 16% (dados até 31 de agosto);
Artigo publicado por Yasmin C. Nogueira, há quatro anos (“Bancos públicos: vantagens e desvantagens de sua existência”): “O resultado que um banco público quer colher é o progresso. Eles podem correr o risco de fazer empréstimos de longo prazo que os bancos privados não fazem, porque têm um objetivo de retorno a curto prazo como lucro elevado. Por isso, numa crise, os bancos privados se protegem. Então eles correm para outros ativos que não são de interesse coletivo, eles se preservam da crise. Eles param de emprestar, como vimos em sua forma mais dura no Rio de Janeiro, onde alguns serviços foram vetados. Por fim, necessário o reconhecimento de que os bancos públicos exercem o papel anticíclico e de apoio a política econômica em momentos de instabilidade, destacando a presença dos grandes bancos comerciais públicos em momentos de crise econômica, em que os riscos de fragilização de bancos privados podem provocar retratação do crédito interbancários e fuga de recursos para moeda estrangeira.