Introdução
Desastres são eventos disruptivos, complexos, severos e dinâmicos, com recursos limitados (humanos e materiais) e elevado nível de incerteza de informações, as quais podem não ser confiáveis, mesmo quando disponíveis. Além disso, o impacto desses eventos na sociedade é expressivo, sendo registrado um total de 315 desastres de magnitude internacional em 2018, com mais de 11 mil mortes, 68 milhões de pessoas afetadas e 131 bilhões de dólares em danos (CRED, 2019). No Brasil, por exemplo, existem grande incidência e predominância de desastres de natureza climatológica e hidrológica como, secas, enchentes e deslizamentos, mas somente após os deslizamentos da Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro em 2011 o governo federal brasileiro passou a adotar medidas estruturais e mais completas na gestão de desastres em nível nacional.
Por um lado, a responsabilidade pela resposta a desastres é cobrada principalmente ao setor público, em particular ao governo. Já por outro, há grande envolvimento do setor social (organizações não governamentais, redes de ajuda religiosas ou de voluntários) e ainda um aumento, com o passar dos anos, do envolvimento do setor privado como um participante fundamental. Assim, a tomada de decisão na logística de resposta a desastres envolve interdisciplinaridade e elevada interação entre stakeholders do setor público, setor privado e da sociedade (Fontainha et al., 2017). Consequentemente, a gestão destes stakeholders, de diferentes perfis, culturas e interesses, é reconhecida como um assunto crítico e que merece mais pesquisas. Isso porque a dificuldade em gerenciar todos os stakeholders nesse contexto de desastres e operações humanitárias está associada a maiores custos de estoque, prazos de entrega mais longos e outras ineficiências de logística, que representam entre 60% e 80% dos custos operacionais globais (Tatham e Pettit, 2010).
De acordo com Neely et al. (2008), aprimorar o desempenho de operações depende da consideração de algumas dimensões que se inter-relacionam. E no contexto de colaboração público-privada-social na logística de resposta a desastres, tais dimensões são definidas como: (a) stakeholders envolvidos, (b) satisfação para esses stakeholders, (c) processos realizados, (d) estratégias para colaboração. Assim, o presente artigo tem dois objetivos. O primeiro deles é apresentar a construção do framework que possibilita o desenvolvimento de estratégias de colaboração entre o setor público, privado e da sociedade na resposta a desastres com base nas dimensões adaptadas de Neely et al. (2008). O segundo deles é discutir os avanços e lacunas na colaboração dos diferentes stakeholders no contexto brasileiro, o que é realizado pela comparação da resposta ao desastre da Região Serrana em 2011 e de um simulado realizado na mesma região no ano de 2017. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida na tese de doutorado em Engenharia de Produção do Departamento de Engenharia Industrial da PUC-Rio (Fontainha, 2018) e do Lab Hands (Humanitarian Assistance and Needs for Disasters), a qual recebeu o HUMLOG Best Doctoral Thesis Award 2019, oferecido pelo HUMLOG Institute – um Instituto de Pesquisa em Logística e Supply Chain Humanitário pertencente à Hanken School of Economics, da Finlândia.
Framework para estratégias de colaboração na resposta a desastres
A primeira dimensão do framework de colaboração se refere à identificação de quais os stakeholders envolvidos no contexto de desastres. Nesse sentido, Tatham e Spens (2016) observam que, apesar do recente aumento de pesquisas no assunto, falta um entendimento comum das inter-relações relacionadas à gestão de stakeholders no contexto de desastres, e um vocabulário comum e seus significados. Assim, Fontainha et al. (2017) realizam uma revisão da literatura acadêmica para identificar os padrões entre os modelos de stakeholders da área, e em seguida propõem o Modelo de Stakeholder para Relacionamento Público-Privado-Pessoas em operações humanitárias e de desastres (Figura 1) que identifica e define dez principais stakeholders: governo; militares; legislativo e regulatório; mídia; setor privado; fornecedor direto; rede de ajuda internacional; rede de ajuda local; doador; e beneficiário.
A segunda dimensão, de satisfação dos stakeholders, trata do relacionamento entre as organizações de acordo com duas perspectivas: os relacionamentos diáticos (envolvendo apenas dois tipos de stakeholders) e complexos (envolvendo simultaneamente três ou mais diferentes tipos de stakeholders). Essa abordagem é relevante para a logística resposta a desastres porque as organizações geralmente entendem bem apenas suas próprias operações e desconhecem os papéis de outras partes interessadas (Nirupaman e Etnikin, 2012). Assim, Fontainha et al. (2018) realizam uma revisão de literatura para sintetizar a satisfação dos stakeholders na resposta a desastres, considerando relacionamentos complexos envolvendo ao menos um stakeholder de cada um dos três grupos definidos no modelo da Figura 1. Com isso, são caracterizadas 29 satisfações de stakeholders envolvendo relacionamentos complexos.
A terceira dimensão está relacionada ao gerenciamento de processos. Nesse aspecto, a literatura acadêmica possui diversos modelos com perspectiva ampla e diversificada em relação à notação de modelagem, respeito aos princípios de modelagem, método para coleta e origem dos dados, tamanho do modelo, o tipo e o local do desastre e stakeholder envolvido. Nesse contexto diversificado, Fontainha et al. (2016) revisam a literatura sobre os modelos de processos existentes e identificam padrões que servem de base para o desenvolvimento de um modelo de referência para processos de resposta a desastres. Nesse trabalho são definidos nove macroprocessos principais, a saber: Reconhecimento da ocorrência de desastre; Avaliação da situação atual; Busca e salvamento; Restabelecimento de infraestrutura durante resposta; Solicitação de recursos durante a resposta; Transporte de recursos durante a resposta; Atendimento à população; Operações de desmobilização; e Operações de suporte à resposta. Além disso, Fontainha et al. (2016) argumentam que o modelo permite fluxos diferentes entre esses processos, pois, dependendo da especificidade do desastre, alguns processos podem ser implementados ou não dependendo do tipo de desastre e o que é demandado em sua resposta. Os autores explicam ainda que esse modelo é adequado para todos os stakeholders e que pode ser usado como referência e ferramenta para melhorar o planejamento da resposta a desastres.
A quarta dimensão proposta para o framework se refere a estratégias de colaboração. Nesse sentido, há na literatura acadêmica trabalhos abordando a colaboração apenas entre alguns stakeholders específicos, por exemplo, apenas entre organizações humanitárias internacionais e ainda entre redes de ajuda internacionais e fornecedores diretos de logística direta. Nesse contexto, Jahre (2017) realiza uma revisão de literatura acerca das estratégias consideradas por diferentes stakeholders sob a perspectiva de colaboração na logística de desastres e identifica seis elementos de estratégia colaborativa: coordenação; relação com fornecedor; cooperação comercial-humanitária; compras colaborativas; colaboração civil-militar; adaptabilidade; e redes orquestradas.
Por fim, a estruturação integrando essas quatro dimensões é apresentada na Figura 3. A importância desse framework integrado reside no fato de que a identificação dos stakeholders permite a correta identificação da satisfação dos stakeholders que devem ser atendidas na resposta a desastres, bem como a identificação de quais stakeholders devem executar quais processos, e quais satisfações interferem a execução de tais processos. Além disso, todas essas discussões perpassam as estratégias de colaboração.
Comparação do desastre da região serrana em 2011 e o simulado em 2017
Tomando como base o framework apresentado na Figura 3, o presente trabalho realiza ainda uma análise da evolução da resposta do desastre da Região Serrana em 2011 para o Exercício Conjunto de Defesa Civil (ECADEC) desenvolvido pelos militares e Defesa Civil no mesmo local em 2017. Na comparação entre 2011 e 2017, observa-se melhoria no envolvimento de algumas ONGs que atualmente fazem parte da estrutura oficial de resposta no estado do Rio de Janeiro. Todavia, não havia em 2011 e continua não havendo atualmente uma interação entre o governo e empresas que possuem recursos e que desejam ajudar na resposta a desastres (tais como empresas locais e associações de empresas). Esse é inclusive um dos grandes entraves das políticas públicas atuais, tendo em vista que há profissionais que atuam com gestão de desastres no governo federal que indicam a existência de empresas que desejam doar produtos que podem ser utilizados na resposta a desastres, mas que as agências do governo não aceitam por ausência de amparo legal sobre o assunto.
Igualmente, não se observa a convocação e participação explícita da população local (ou representantes de associação de moradores) na realização do ECADEC em 2017. Fontainha et al. (2017) destacam que aproximadamente metade das pesquisas sobre os stakeholders no contexto de desastres não integram explicitamente a população afetada como um stakeholder nas atividades de preparação e resposta a desastres. Dentre os que consideram a população afetada, muitos trabalhos definem a população apenas como um agente passivo que somente recebe os recursos oferecidos pelos demais stakeholders. Todavia, a própria população afetada é um dos stakeholders principais nos primeiros momentos da resposta a desastres, atuando de forma ativa antes mesmo da chegada dos esforços de defesa civil. Assim, o trabalho já publicado em 2017 destaca a importância de considerar o papel ativo da população afetada por desastres. Apesar disso, observa-se que ações de larga escala do governo brasileiro, como o ECADEC, ainda consideram apenas uma perspectiva passiva da população afetada (Fontainha, 2018).
Além disso, apesar de haver uma evolução legislativa entre 2011 e 2017 com a criação das leis 12.608 e 12.340, e de aprimoramentos na doutrina escrita dos militares em atuação na resposta a desastres, há ainda uma carência de uma concepção visual e completa dos processos de reposta ao desastre - o que é relatado inclusive por alguns dos militares envolvidos no ECADEC de 2017. Desta forma, destaca-se que tal carência pode ser sanada diretamente pela utilização do modelo de processos desenvolvido por Fontainha et al. (2016), o qual tem como objetivo criar uma visão comum entre todos os stakeholders envolvidos na resposta a desastres, sejam eles militares, empresas, redes de ajuda, e a própria população.
A partir desses resultados, destaca-se a importância da utilização de todas as ferramentas e do framework para colaboração de stakeholders na resposta a desastres. Essa utilização completa da solução aumenta a robustez dos resultados no atendimento das demandas da população, integrando os esforços de todos os stakeholders, minimizando ineficiências de esforços repetidos e o não atendimento das demandas da população afetada.
Conclusões
O artigo apresenta quatro revisões de literatura separadas, as quais podem ser consideradas uma referência para todos os stakeholders envolvidos na resposta a desastres e usadas no planejamento logístico dessas operações. Além da perspectiva de ferramentas independentes relevantes para acadêmicos e profissionais, o framework proposto que integra as quatro dimensões (stakeholders, satisfação, processos e estratégias de colaboração) traz valor adicional, pois indica que decisões e informações de cada dimensão interferem diretamente nas decisões e informações das demais dimensões.
O estudo de caso comparando a evolução entre a resposta ao desastre da Região Serrana do RJ em 2011 e o simulado realizado em 2017 na mesma região também traz contribuições importantes para acadêmicos e profissionais. Isso porque a aderência do framework à realidade é verificada, demonstrando a sua capacidade de servir como ferramenta para melhor planejamento da logística de resposta a desastres, aprimorando a colaboração de stakeholders e do atendimento das necessidades beneficiários.
Referências
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