Exatamente no dia 15 de fevereiro de 2019, publiquei um artigo aqui no portal Tecnologística (“Executivos precisam entender que suas ações impactam a vida de milhares de pessoas. Compreender e capacitar-se para esse novo papel são exigências mínimas”), que procurava alertar os novos dirigentes, cada vez mais envolvidos com o avanço tecnológico (sempre necessário e desejável), tanto do setor público como do setor privado, sobre a necessidade de compreenderem “o quanto é grandioso trabalhar para o sucesso – mais do que isso, para a sobrevivência – de seus subordinados, seus familiares, suas empresas e seus países”. E concluí: “entender os reais impactos de nossas ações junto a toda a sociedade, e não somente junto às nossas empresas, é essencial, pois ao final de tudo, de um jeito ou de outro, essas ações irão impactar – para o bem ou para o mal – a vida de milhões de pessoas.
Mais recentemente, no XXV Fórum Internacional de Supply Chain, realizado pelo Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos), no final do mês passado, o que mais me chamou a atenção foi a constatação de que, mesmo em assuntos extremamente técnicos, como são os casos da logística e do supply chain, as discussões sobre política e economia também se fizeram presentes. E não de forma periférica ou superficial, como costumeiramente acontece, mas de uma forma direta, pois mesmo que muitos ainda não queiram aceitar, as atividades do setor e a forma como se dá sua evolução, criam impactos importantes, direta e indiretamente, na sociedade, na economia e na política de uma sociedade. Qualquer que seja ela.
Foi exatamente o que aconteceu na palestra do professor e Phd Dale Rogers, da Universidade do Arizona (EUA), ao falar sobre a “Evolução da Transformação Digital do Supply Chain”. Depois de comentar sobre os impactos transformadores da tecnologia, do “machine learning”, da “artificial intelligence” ou da “cognitive computing”, o professor discorreu sobre suas experiências profissionais, principalmente nos países e empresas que adotaram, de forma mais intensa, o avanço tecnológico no campo da logística.
Objetivamente, o professor Dale comentou sobre um fato incontestável: já nos últimos 20 ou 30 anos, proveniente dos avanços tecnológicos e de melhorias dos processos de produção, a diminuição no número de empregos de menor qualificação, tem sido significativamente maior do que o aumento no número de empregos de maior qualificação. Novos empregos que, além de exigirem mais conhecimento e capacitação, cobram postura mais inovativa de seus pretendentes. Em resumo, o processo de avanço tecnológico, mas diferentemente de outras épocas, tem contribuido para a efetiva diminuição do número de empregos.
Guardadas as devidas proporções, em processo idêntico àquele ocorrido nos Estados Unidos, ainda segundo Dale, é o que vem ocorrendo no Brasil, nestes 10 ou 15 últimos anos.
De fato, a compreensível busca de melhorias contínuas no desenvolvimento de processos automáticos e autônomos, de coleta, inserção e, principalmente, de análise de dados em quantidades cada vez maiores, bem como a computação cognitiva e a inteligência artificial, exigem aperfeiçoamento, aprendizado e capacitação constantes, priviligiando claramente as pessoas melhores formadas que, em um país como o Brasil, geralmente e com as exceções de sempre, pertencem às classes mais ricas, desempregando de forma importante aquelas menos preparadas, pertencentes, quase que automaticamente, às classes mais pobres.
Por outro lado, e também parece não haver dúvidas quanto a isso, na medida em que a produção de bens econômicos e a prestação de serviços tem maiores partipações do Capital e da Mão-de-Obra Qualificada, quase toda a remuneração correspondente tende, de forma crescente inclusive, a privilegiar esses dois fatores de produção.
Mas isso ocorre também nos países desenvolvidos, num processo inexorável e persistente, no qual as tarefas mecânicas, rotineiras ou que, via avanço tecnológico, vão sendo substituídas pelas “maquinas”, expulsam do mercado de trabalho, mão-de-obra menos qualificada. O professor Dale, ao mencionar esse tipo de “desemprego estrutural”, atreveu-se a comentar, precisa e devidamente, os impactos políticos, econômicos e sociais que essa evolução tecnológica tem gerado. Negativamente e com possibilidades de aumentar, caso não se compreenda o fenômeno de forma abrangente e correta. Dale, inclusive, citou o economista francês Thomas Piketty, que há 5 anos atrás escreveu o livro “O Capital no Século XXI”.
No livro Piketty demonstra com clareza e números reais (ele consolidou números e informações coletadas em vinte países dos últimos duzentos anos), que “o crescimento econômico e a difusão do conhecimento ao longo do século XX impediram que se concretizasse o cenário apocalíptico preconizado por Karl Marx, mas, ao contrário do que o otimismo dominante após a Segunda Guerra Mundial costuma sugerir, a estrutura básica do capital e da desigualdade permaneceu relativamente inalterada”, traduzindo-se “numa concentração cada vez maior da riqueza, um círculo vicioso da desigualdade que, a um nível extremo, pode levar a um descontetamento geral e até ameçar os valores democráticos”. Piketty, entre outras, fez duas observações não menos importantes e que devem no levar a refletir: 1ª. “a evolução dinâmica de uma economia de mercado e de propriedade privada, deixada à sua própria sorte, contém forças de convergência importantes, ligadas sobretudo à difusão do conhecimento e das qualificações, mas também forças de divergências vigorosas e potencialmente ameaçadoras para nossas sociedades democráticas e para os valores de justiça social sobre os quais elas se fundam”, e 2ª. “se deve sempre desconfiar de qualquer argumento proveniente do determinismo econômico quando o assunto é a distribuição da riqueza e da renda. A história da distribuição da riqueza jamais deixou de ser profundamente política, o que impede sua restrição aos mecanismos puramente econômicos”.
Em entrevista concedida ao jornal Valor em junho de 2019 (“Políticas para combater a Desigualdade”), a diretora geral do FMI, Christine Lagarde, afirmou: “o crescimento inclusivo é um dos maiores desafios do nosso tempo”, pois “o lado amargo da nova realidade é que, apesar do crescimento econômico, um número excessivo de pessoas está ficando para trás”. Analisados as economias mais avançadas, constatou-se uma clara tendência, desde 1990 e até agora, de aumento da desigualdade. “Mas se olharmos para as economias emergentes e em desenvolvimento, o quadro é mais complexo”.
O Relatório de Desigualdade Global, produzido pela Escola de Economia de Paris, indica que no ano passado a população 1% mais rica ficou com 28,3% dos rendimentos brutos globais, enquanto a população 50% mais pobre, com apenas 13,9%. No Brasil, em 2018, o índice Gini, que mede o grau de concentração de renda de um país (de zero a um, quanto mais próximo de um, maior é a desigualdade), chegou a 0,55. Número bastante alto, considerando que na grande maioria dos países desenvolvidos o índice não chega a 0,45. No Japão, Canadá, Alemanha, Noruega, Dinamarca e Suécia, por exemplo, esse índice está entre 0,25 e 0,30.
Outros indicadores têm apontado para o fato de que, na composição de renda total do brasileiro, a participação do salário tem diminuído, dando lugar, inclusive, para o aumento de receitas oriundas de transferências e benefícios pagos pelo governo, em suas diversas formas. O rendimento oriundo do trabalho, em 2018, não ultrapassou os 72,5%, sendo o restante composto por aposentarias/pensões/pensão alimentícia/doações, 21,7%, e outros,5,8%. É óbvio que alcançar o equilíbrio das finanças públicas tende a ser cada vez mais difícil, caso esse tendência permaneça.
Nesta crise pela qual passa o Brasil, um dos maiores problemas – se não o maior, posto que apresenta impactos sociais gravíssimos – é o desemprego que, entre outros, tem dois fatores preponderantes agindo simultaneamente: um oriundo da grande evolução tecnológica, que gera grandes transformações nos diversos setores produtivos de nossa economia (“desemprego estrutural”), talvez muito pouco discutido aqui no País, e outro que advém do baixo crescimento econômico, fruto da crise que, por sua vez, tem como principais causas a falta de investimentos e a queda substancial do consumo das famílias. O consumo das famílias representa mais de 60% do PIB nacional, quando este é analisado pelo fluxo da demanda!
O professor Paul Collier, da Universidade de Oxford, em seu livro “O futuro do capitalismo” (“um livro ambicioso, que faz pensar”, segundo Bill Gates), consegue mostrar que o processo de concentração de renda, generalisado em quase todo o mundo, não é inerente ao capitalismo, mas sim a uma “falha de funcionamento que pode e deve ser corrigida”. E, ao contrário de propostas nostálgicas e de retorno ao passado, defendidas por populistas nacionalistas que adotam políticas cada vez mais excludentes, ele sugere a restauração da política e da sociedade inclusiva como caminho para que se crie um mundo mais ético, no qual o Estado, a Família e a Empresa desenvolvam papéis igualmente éticos.
Pois é. Queiramos ou não, a discussão sobre política, sociedade e economia – e já era tempo – também chegou na logística e no supply chain. Um capitalismo mais ético exige esforços de todos.