“Navegar é preciso”. Quando, no início do século XX, o poeta português Fernando Pessoa escreveu um de seus mais famosos poemas, muito provavelmente ele não observava a navegação como uma opção de transporte importante ao desenvolvimento logístico e, consequentemente, para o crescimento das atividades industriais e da economia de um país.
Mas, certamente, se tal poema fosse escrito no Brasil atual, dificilmente haveria a dupla interpretação para o termo “preciso”, que pode remeter à precisão, acurácia e também pode criar uma ideia de necessidade, aquilo que torna algo “necessário”. Talvez seja essa última palavra a que melhor define a navegação e, por consequência, o transporte aquaviário no Brasil contemporâneo: trata-se de algo necessário.
A ideia do desenvolvimento sustentável do transporte aquaviário, marítimo ou hidroviário/fluvial no Brasil está relacionada a muitos aspectos importantes:
1. Oferece grande vantagem competitiva devido ao efeito da economia de escala, uma vez que se utiliza de veículos com maior capacidade de transporte quando comparados a trens e caminhões. Para exemplificar, um comboio hidroviário de soja pode transportar o equivalente ao que se transporta em aproximadamente 870 caminhões ou em pelo menos 2,25 composições ferroviárias com cem vagões.
Isso faz com que, para se transportar uma mesma demanda, seja realizada uma quantidade menor de viagens quando o modal escolhido é o aquaviário, levando a uma redução de custo unitário transportado;
2. Redução no consumo de combustível. Utiliza-se um terço da quantidade de combustíveis necessária para transportar 1 tonelada de carga por quilômetro por uma rodovia com os caminhões. Um comboio economizaria 810 mil litros de combustível transportando 1 t de carga a cada mil km rodados. O meio ambiente agradece pela menor emissão de poluentes;
3. O impacto do transporte aquaviário no dia a dia das pessoas é menor, uma vez que não causa congestionamentos, reduz os riscos de acidentes e do roubo de cargas;
4. As características geográficas do território brasileiro são favoráveis ao modal aquaviário. Trata-se de um país com grande extensão da faixa litorânea. São mais de 7 mil km banhados pelo Oceano Atlântico, de norte a sul, o que permitiria o uso em grande escala da navegação de cabotagem, o transporte aquaviário marítimo realizado na costa de um país ou a pequenas distâncias do continente.
A cabotagem é utilizada em larga escala, por exemplo, na Europa, onde a extensão do continente permite que esse tipo de navegação seja realizado para conectar diferentes países. Para alavancar o transporte marítimo de mercadorias próximo à costa, os europeus desenvolveram o projeto “Motorways of Seas”, cuja tradução livre seria “autoestradas dos mares”, um conjunto de estratégias e regulamentações que permitiu integrar não só as conexões marítimas, mas também as fluviais, e culminou em considerável aumento do uso da cabotagem no continente. Na figura a seguir observamos os eixos prioritários de transporte entre os países europeus.
5. Destaca-se a abundância de rios e bacias hidrográficas em todas as regiões do país. A disponibilidade de vias que poderiam se tornar navegáveis para movimentações de grandes volumes deveria ser muito mais aproveitada do que atualmente é, mas isso não depende somente das empresas e operadores logísticos. É necessário que o governo atue fortemente, seja na promoção de um ambiente que incentive os investimentos e o uso do modal hidroviário, seja no planejamento de melhorias de infraestrutura.
O apoio governamental é importante porque existem desafios no relevo em que estão inseridos os rios brasileiros. Boa parte deles é de rios de planalto com variações de profundidade ao longo de seu curso e presença de trechos com corredeiras. Se por um lado isso se constitui um obstáculo, por outro pode ser uma oportunidade para que cuidemos melhor de nossos rios e evitemos assoreamentos, aumento da poluição e redução da capacidade de aproveitamento para navegação, turismo ou pesca.
Conforme a tabela anterior, uma extensão aproximada de 42 mil km poderia ser utilizada para o transporte de carga no Brasil, o que representaria ganho de competitividade para empresas e grande melhoria da diversificação da malha logística para o Brasil.
6. O modal hidroviário requer menos investimentos em obras e infraestrutura do que os outros modais, uma vez que a via, no caso os rios, já existe e, portanto, os investimentos devem ser em adaptação, sinalização e terminais adequados. Em suma, as dragagens, derrocamentos e eclusas representariam a maior parcela dos investimentos a que governos estaduais e federais deveriam destinar recursos;
7. Menor dependência do modal rodoviário e menor tempo de espera em fiscalizações. Vale lembrar aqui a greve dos caminhoneiros ocorrida neste ano de 2018, que provocou transtornos para a economia nacional e para a população;
8. Transporte de grandes cargas sem a necessidade de desmontagem e interferência em horários de trânsitos em vias locais de cidades e estradas;
9. Menor custo de manutenção e maior vida útil do modal. Segundo dados da Associação Nacional de Transportes Aquáticos (Antaq), o custo de manutenção de uma hidrovia equivale a aproximadamente 10% do custo de manutenção de uma rodovia e a 3% do custo de uma ferrovia. Enquanto a vida útil dos equipamentos e veículos em uma rodovia é de dez anos, em uma hidrovia pode chegar a 50 anos;
10. Possibilidade de integração das bacias hidrográficas do Orenoco, do Amazonas e do Prata, favorecendo o comércio e a competitividade na América Latina.
Além da presença do governo, deve-se destacar também o papel que o mundo acadêmico tem de influenciar a cultura da mudança da matriz de transporte, seja por meio do incentivo a pesquisas que avaliem os gargalos do sistema aquaviário, seja através da disseminação das vantagens e ganhos obtidos quando se transfere uma carga das estradas para dentro das embarcações. Todos saem ganhando.