Há cerca de trinta anos, um círculo restrito dentro do mundo da gestão empresarial começava a pregar os princípios que ainda hoje norteiam a gestão das cadeias de valor. Este artigo revisita esses princípios com a intenção de responder como são aplicados na realidade das empresas e se temos ainda “promessas” não realizadas.
Há trinta anos, fui atraído pela ideia de oferecer consultoria em Logística e assim tornei-me um de dois fundadores da empresa da qual sou dirigente e que nascia com o propósito de aportar conhecimento e dar suporte à implementação de práticas e processos inovadores à “Logística” das empresas. As aspas foram colocadas porque o termo Logística no Brasil era de uso extremamente restrito, frequentemente confundido com práticas militares, meio onde era mais difundido. Nessa época, a cada vez que usávamos o termo, éramos obrigados a explicá-lo. Já no cenário internacional, a globalização ensaiava seus primeiros passos e mais tarde criaria a noção de Cadeias de Abastecimento, hoje em processo de transformação para Cadeias de Valor, começando a reconhecer o valor criado pela integração já proposta na época pela Logística.
Sem nos prender a datas exatas e a autoproclamados autores (conheço mais de um), pois o propósito do artigo não é o de traçar a linha da história com precisão de datas e fatos e muito menos o de alimentar uma disputa de egos, o termo “Supply Chain Management” surge na década de 1980 e ganha força no cenário global de 1990, assumindo o papel de integração interna e externa às empresas que até aí vinha embutido na Logística. Assim, a Logística passa a estar ligada à execução do SCM, que se desdobra em desenho estratégico, planejamento tático e nessa execução.
Falando dos princípios, com foco básico em Gestão Integrada, podemos mencionar:
• O ótimo do todo sempre leva a um resultado melhor do que a soma do ótimo de cada uma das partes, o que define a existência de trade-offs (trocas compensatórias);
• A visão para desenho das cadeias e/ou solução de problemas deve ser holística e estar centrada no patamar mais alto (mais abrangente) que se puder enxergar;
• Essa visão abrangente entende como cadeia o conjunto de pessoas, processos, fontes de produtos e materiais, energia, recursos naturais, movimentação e informação necessários para que produtos ou serviços sejam disponibilizados para seu consumidor final, bem como as entidades responsáveis por cada um desses elementos;
• O jogo a praticar é o ganha-ganha, o que pressupõe que não é obrigatório que um parceiro perca para que outro ganhe, definindo na prática a colaboração;
• O principal trade-off é elemento integrante da estratégia de negócios e norteia o desenho dos supply chains; é o equilíbrio a ser obtido entre atendimento à demanda e margem de contribuição, que são objetivos do negócio; esse equilíbrio pressupõe um nível de serviço coerente com a proposta de valor da empresa.
Esta lista não esgota a discussão e não pretende ser a última palavra, portanto fiquem à vontade para adequá-la a seus negócios e sua visão.
Princípios e realidade
O trade-off entre atender à demanda e obter a margem de contribuição desejada é um dos elementos definidos pela estratégia de negócios, que pressupõe termos noção definida do que é o negócio, qual o tamanho do mercado que pretendemos atingir, qual o caminho e o custo de obtenção dessa participação de mercado, bem como a exposição a riscos que a mesma implica.
Um pré-requisito para chegarmos a essas decisões é a definição da proposta de valor do negócio, que diferencia a empresa e viabiliza a obtenção dos objetivos. O outro é ter o desenho do supply chain, ou estratégia de operação (como alguns preferem chamar) voltado a materializar a proposta de valor e a otimizar o resultado – margem de contribuição – não somente como percentual da receita total, mas também em tamanho absoluto.
Os Diagramas 1 e 2 materializam o processo de desenho do supply chain e sua relação com a definição da proposta de valor, e é fácil perceber que um direciona e o outro habilita, sendo ambos elementos da estratégia do negócio.
Até a poucos anos atrás (dois ou três no máximo) soava como heresia essa interação dos dois elementos, pois o raciocínio corrente era “temos um mercado e uma participação a buscar, muitas vezes definida pela ‘capacidade de produção e financeira’ e ao fato de ser um ‘problema’ da Logística prover os meios de menor custo para isto, porém com o melhor nível de serviço”. A implicação clara é a inexistência pelo menos da seta “habilitador” do Diagrama 1 (quando não as duas), anulando no nível estratégico todos os princípios anteriores, e imaginando-se que pudessem ser aplicados somente nos níveis táticos e operacionais.
A primeira consequência dessa postura é a perda de oportunidades de conseguir-se a diferenciação da empresa no mercado com melhoria simultânea de resultados (margem e custos), passando com muita ênfase a “fazer mais do mesmo” e, pior, acreditando que isso leve a melhores resultados. A segunda, também imediata, é que ao empurrar para baixo, e não estamos falando apenas de hierarquia, mas do nível em que se busca a solução para o “problema”, limitamos as soluções às mais básicas e de alcance apenas operacional. Em muitas situações isto traz, sim, resultados rápidos, o que em bom “consultês” batizamos de “quick wins”, necessários e desejados, porém criando a armadilha de cortar o impulso da busca de melhorias mais abrangentes e, por certo, mais difíceis de se consolidarem, sendo, no entanto, as mais longevas e que provavelmente mudarão a empresa de patamar.
Até aqui, na prática não estaremos aplicando o último princípio enunciado e limitando em muito a aplicação de todos os outros, em particular o de colaboração ou ganha-ganha e também o do ótimo do todo.
Abordagem alternativa
Embora esse princípio maior já comece a ser abraçado por empresas significativas, esse estado de coisas mudou pouco. Em parte, porque a mudança de postura ainda não se consolidou nos níveis estratégicos de decisão, por vezes em função de projetos e iniciativas frustrantes, conduzidos de modo equivocado ou incompleto; e em parte também porque a necessidade de “velocidade a qualquer custo” parece conflitar com essa abordagem holística.
Podemos afirmar que não conflitam. Porém, a abordagem alternativa e pragmática pode ser a criação da visão holística através do desenho de um Plano Diretor que materialize as oportunidades de resultados, por processos e não por áreas da organização, destacando as de rápida implementação (quick wins), porém não perdendo de vista os projetos que são estruturantes da visão e postura. Nessa abordagem, é obrigatório que todos os projetos ganhem uma “etiqueta” com nome, descrição, patrocinador, objetivos, resultados esperados, dificuldades e custos de implementação, e finalmente uma posição na linha do tempo que reflita prioridades e dependência entre os mesmos. Até aqui, nenhuma novidade para os adeptos dos princípios do PMI; porém insisto ainda na criação da visão holística, obtida quando levamos a discussão para o nível mais alto e abrangente (uma vez mais, não se trata apenas de hierarquia).
Promessas não realizadas
É quase redundante falarmos de promessas não realizadas neste ponto do artigo, pois são as que a aplicação plena dos princípios materializaria, confundindo-se, assim, com os mesmos.
Há controvérsias quando se diz, por exemplo, que a Colaboração não é praticada. Prontamente surgem exemplos, por vezes significativos, em reabastecimento de estoques e mais raramente na execução logística, particularmente em transportes. Já na execução logística, apesar de termos, como consultores, cada vez mais oportunidades de desenvolver e implementar com sucesso modelos de remuneração de operadores logísticos – seja na operação de transportes ou de CDs, que enfatizam ganhos de produtividade, indicadores de desempenho e SLAs definidos em conjunto, e por fim bônus e ônus – tem sido mais difícil trazer para o planejamento operacional os resultados do S&OP (quando existe de fato) e, particularmente, a visibilidade e a capacidade de corrigir rumos “durante o voo” que existe nas suas implementações avançadas (mais raras).
As próprias implementações de S&OP, IBP ou outra sigla que retrate maior nível de integração, esbarram sempre, na prática, na desconfiança entre pessoas que insistem em representar áreas em lugar de processos, anulando ou diminuindo muito as chances do “ganha-ganha”, todo do ótimo melhor do que a soma dos ótimos...
Obrigatoriamente, entraremos aqui na discussão do papel da gestão da mudança e da transformação, essencial em projetos abrangentes de supply chain management, S&OP ou execução logística. O primeiro passo é reconhecermos que pessoas sempre terão perspectivas próprias e que, quando representam áreas ou empresas diferentes, desenvolvem a noção do quem perde e quem ganha muito rapidamente. Muitas vezes, essa noção está presa a uma questão de poder aparente, mas ainda assim muito forte e real na perspectiva dessas pessoas.
Fica aqui o convite para, oportunamente, explorarmos cada um dos princípios e seu desdobramento em projetos da vida real.
Marcos J. Isaac Presidente da Modus Logística Aplicada (11) 5503 2730 marcos.isaac@moduslogistica.com.br