A Audiência Pública (AP) nº 12/2020, da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), no último dia 18 de outubro, em Salvador, colocou no mesmo auditório uma convergência quase absoluta em relação ao futuro da Bahia, tomando-se como base a renovação antecipada da concessão da FCA (Ferrovia Centro Atlântica), controlada pela VLi, a qual tem, como acionistas a Vale, o FI-FGTS, a Mitsui, a Brookfield e o BNDESPar.
Não teria sido crível que alguém naquele dia, naquela assembleia, fosse contra o Brasil, contra a Bahia e contra seus 15 milhões de baianos e baianas, ou ainda contra o mais extenso dos estados nordestinos, com 567.295 km², sendo o estado que mais divisas estaduais faz, sendo 8 esses estados (Piauí, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Tocantins, Goiás, Minas Gerais e Espírito Santo), estando o Maranhão a apenas 64 Km no entroncamento com o Piauí e a Bahia.
Na ocasião, tivemos juntas, já na mesa de abertura, a FIEB (Federação das Indústrias do Estado da Bahia), o Governo do Estado da Bahia e a ALBA (Assembleia Legislativa da Bahia), ali representadas, em uníssono, pelo presidente, Carlos Henrique Passos, pelo secretário da Casa Civil do Governo do Estado, Afonso Florence, representando o Governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, e o deputado estadual Eduardo Salles, representando o presidente da ALBA, respectivamente, cujas falas foram de extrema lucidez e alinhamento.
A Bahia calada e leniente por 3 décadas, parece ter despertado, tendo sentido o trágico efeito do abandono da FCA com o estado, com suas empresas e sua gente, o que terminou por contribuir para a desaceleração econômica do estado, redução da oferta de empregos e geração de renda para seus cidadãos e cidadãs.
Assim como o Rio de Janeiro e o Espírito Santo são os portos naturais de Minas Gerais, a Bahia poderia ter sido, ao longo do período de concessão da FCA, a plataforma logística natural de estados do Centro-Oeste como Mato Grosso e Goiás, além de estados da região Norte, como o Tocantins e alguns outros estados do MaToPiBa (acrônimo de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), segunda fronteira agrícola do país, onde a Bahia é líder na expansão e produção agrícola.
Em 19 de agosto último, no portal Bahia Econômica, publiquei o que entendo ser o caminho necessário para que a Bahia retome seu protagonismo e sua força de escalabilidade econômica. Trata-se do Plano Estratégico de Logística Multimodal Integrado da Bahia (PELMI-BA), onde enfatizo a imperativa necessidade de virmos a ter uma multimodalidade moderna, de vanguarda, se quisermos ter resgatada a importância baiana para a região e para o país, dado ter a Bahia uma das piores malhas rodoviárias e a mais anacrônica malha ferroviária do país, sem conexão competitiva aos portos baianos.
Como “não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis”, de acordo com o filósofo e matemático francês René Descartes, que acreditava não ser possível resolver problemas complexos se não através de processo rigorosos de análise, precisamos desdobrar o que se viu e ouviu na AP quando a Bahia disse, peremptoriamente, NÃO à proposta da FCA, a qual segue esquecendo e negligenciando a Bahia, considerando devolver toda a malha ferroviária baiana da sua tutela, pondo em risco de colapso o trecho necessário para a Bahia e para a integração com o Sudeste e estados do Nordeste, como o tramo Corinto (MG), até Campo Formoso (BA), trazendo soluções tênues e não confiáveis para a conexão com os portos baianos.
Na apresentação realizada pela Agência, não foram apresentados estudos que justificassem a devolução dos trechos apontados pela concessionária. Questões outras deveriam ter sido apresentadas, a exemplo do que foi realizado pela ANTT em 23 anos (período de sua criação) para fiscalizar e acompanhar o contrato até se ter chegado à débâcle do trecho baiano. Multas foram aplicadas ao longo desse período? Quais, e qual o montante?
Haveria de se ter apresentado o inventário dos ativos físicos e das linhas férreas permanentes (estações e pátios; pontes e viadutos; trilhos e dormentes etc), bem como do material rodante (locomotivas e vagões), o que não ocorreu! Ademais, qual o valor total do patrimônio recebido à época da concessão e qual o valor atual com os seus reajustes?
Esperava-se que a ANTT apresentasse estudo sobre produtividade com o atual traçado e gabarito das linhas, e o impacto da anacrônica bitola métrica, o que resulta em velocidade média de 11 km/h, e o registro dos acidentes agravados pelas inúmeras passagens em nível por muitas cidades interioranas baianas. Não se viu o cotejamento com as demais ferrovias nacionais e os benchmarks internacionais, capazes de melhor ilustrar as decisões necessárias para a renovação ou não da concessão.
Faz-se necessário que a ANTT apresente relatórios técnicos, econômicos e financeiros que venham justificar a renovação da concessão e em quais níveis, referendando ou rechaçando a proposta da FCA, além de apresentar estudos e relatórios atualizados de due diligence que possibilitem avaliar os prejuízos e passivos legados pela concessão.
Em excelente artigo no dia 24 de outubro, no Estado de São Paulo, com o título “As ferrovias precisam do orçamento público”, o economista paulista, José Serra, nos endereça a um campo de discussões ainda mais complexo, todavia muito oportuno para o momento, quando precisamos de elementos de análise, tanto para o desdobrado da renovação da concessão da FCA, quanto para as demais demandas ferroviárias para a Bahia, para o Nordeste e para o Brasil, senão vejamos.
Dispomos no Brasil de duas das mais competitivas ferrovias do mundo, bem geridas e que atendem ao seus propósitos específicos, a exemplo da EF-315, a Estrada de Ferro Carajás (EFC), com 895 km, cujas obras se iniciaram em 1982 e foram finalizadas em 1985, ligando Carajás, Marabá e Parauapebas no Pará, até o Porto de Ponta da Madeira, no município de São Luís, Maranhão. Com bitola irlandesa de 1,60m, a EFC chega a operar, diariamente, entre 18 e 20 trens com mais de 330 vagões que saem das minas da Vale no Pará, transportando mais de 36 mil toneladas de carga. Essa ferrovia, iniciada e concluída com recursos públicos, construída em tempo recorde, tem capacidade de operar a uma velocidade máxima de 132 km/h e velocidade média de 80 km/h, bastante diferente da FCA na Bahia, que não ultrapassa os 11 km/h.
A segunda mais competitiva ferrovia brasileira é a EF-262, a EFVM (Estrada de Ferro Vitória Minas), com bitola métrica, característica da época, teve suas obras iniciadas no final do Século XIX, inaugurada em 1904. Concebida com capital público, com 905 km de extensão, liga o Vale do Aço em Minas Gerais aos Portos de Vitória e Tubarão, no Espírito Santo. Mesmo sendo de bitola métrica, seu gabarito permite ser a EFVM uma ferrovia competitiva, com velocidade máxima que chega a 90 Km/h e velocidade média de 67 km/h.
Ambas as ferrovias são concessionadas à Vale, são de alta performance e têm ainda em comum serem estradas de ferro de passageiros.
Outra ferrovia de alta demanda e de bitola larga (1,60m), é a EF-151, a FNS (Ferrovia Norte Sul), com extensão de 2.184 km, operada pela VLi, de Açailândia (MA) à Porto Nacional (TO), e pela RUMO Logística, de Porto Nacional (TO) à Estrela d'Oeste (SP), de onde se conecta com a Malha Paulista, seguindo para o Porto de Santos (SP). A FNS que começou a ser planejada em 1985, durante o governo do presidente José Sarney, também com recursos públicos, com a sua conclusão após 36 anos do início das obras, em 25/05/2023 pela RUMO Logística é, na atualidade, o eixo dorsal ferroviário do país.
Em Açailândia (MA), a FNS se conecta com a EFC para acesso ao Porto do Itaqui (MA). Também no Maranhão, a partir de Porto Franco, com a implantação da ligação a Eliseu Martins (PI), irá se conectar com a ferrovia Transnordestina, o que permitirá acesso alternativo da produção aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE). Futuramente, independentemente do traçado da FIOL (Ferrovia de Integração Oeste-Leste) se para Figueirópolis (TO) ou Mara Rosa (GO), a FNS terá acesso tanto à FIOL, quanto à FICO (Ferrovia de Integração Centro-Oeste), em Mara Rosa (GO).
A Transnordestina, no trecho entre Eliseu Martins (PI) e Pecém (CE), pertence à TLSA (Transnordestina Logística S.A.), uma subsidiária da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional). Embora a TLSA seja uma empresa privada, recebeu, preponderantemente, recursos públicos.
Os parágrafos anteriores deixam claro que, caso a Bahia não priorize suas ações por uma ferrovia competitiva e moderna, atendendo às conexões com suas áreas de produção, com Minas Gerais, com a FICO e FIOL, e portos baianos, estará condenando o futuro socioeconômico do estado, de forma irreversível.
De igual forma, o que vimos é que projetos ferroviários demandam investimentos públicos indutores, para atração do capital privado, a posteriori. É importante compreendermos que empreendimentos ferroviários são de capital intensivo (elevado Capex), assim como trazem custos operacionais robustos (Opex) com manutenção, sinalização, segurança e material rodante. Novas ferrovias exigem grandes exercícios para prever as ofertas de carga, tarifas e receitas (principais e acessórias) que viabilizem o investimento, sobretudo em países de largas distâncias como o Brasil ou trechos para escoamento de produções específicas, próprios às shortlines.
Novas demandas per si (projetos greenfield), trazem riscos ainda maiores, haja vista o imponderável das licenças ambientais, das questões territoriais, fundiárias e de engenharia de projetos. Desta forma, novos projetos, a partir de potencialidades estudadas e comprovadas, devem contar com a possibilidade de orçamento público para viabilizar o desenvolvimento equânime e mais célere do país, assim como vemos em outras nações, a exemplo dos Estados Unidos cujo orçamento aloca US$66 bilhões em ferrovias, com programas específicos para fomentar shortlines via aporte e financiamento público de longo prazo. Países europeus idem, suportam através de financiamentos públicos a infraestrutura ferroviária com dezenas de bilhões de euros, enquanto países asiáticos injetam bilhões de dólares no setor ferroviário.
Como visto, não existem métodos fáceis para resolver problemas difíceis, assim, obrigam-se todos a unirem-se para as soluções que venham mitigar o impacto negativo que foi levada a Bahia por força de não ter tido o direito de contar com uma logística multimodal de transportes moderna e conectada aos seus portos e suas áreas fecundas de produção. A Bahia não mais aceita isolar-se. Merece uma logística da vanguarda!
* Carlos Cesar Meireles Vieira Filho é mestre em Administração pela UFBA, tem MBA em Economia e Relações Governamentais pela FGV, Certificado em Conselho pela FDC, é cofundador e ex-presidente da ABOL (Associação Brasileira de Operadores Logísticos) e é sócio-diretor da TALENTLOG – Consultoria e Planejamento Empresarial Ltda. Recebeu a Medalha do Mérito Santos Dumont do Comando da Aeronáutica | Ministério da Defesa, em 2024.