Recente reconhecimento de repercussão geral pelo Supremo em um caso de cobrança de IPTU sob bens de concessão ferroviária reacendeu debate mais amplo sobre as imunidades recíprocas sob bens concedidos. Mais que uma discussão teórica entre tributaristas e outros profissionais do direito público, a matéria é de suma relevância para estruturação de projetos de concessão, especialmente no setor de transportes.
Houve o tempo em que a extensão da imunidade sobre bens públicos para fins de incidência do IPTU, conforme art. 150, VI, “a” da Constituição, não costumava preocupar profissionais de estruturação de projetos de concessão como preocupa hoje.
Tudo mudou quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em dois casos de concessão de uso, pela possibilidade de cobrança de IPTU pelos Municípios correspondentes. A tese fixada era a de que “não se estende a empresa privada arrendatária de imóvel público, quando seja ela exploradora de atividade econômica com fins lucrativos”.
A inflexão na posição do STF, plasmada no RE 594.015 e no RE 601.720 gerou novo ânimo arrecadatório por parte de diversos Municípios e a constatação posterior de possíveis injustiças resultantes da aplicação generalizada e irrefletida desses precedentes agitaram os anos seguintes.
Nos anos que se seguiram a publicação desses precedentes o STF vinha validando a cobrança de IPTU de sociedades de economia mista e concessionárias de serviço público sob o argumento que tais entidades não gozariam (subjetivamente) de imunidade e, portanto, deveriam suportar o ônus da tributação. Um dos exemplos dessa aplicação rasa dos precedentes foi o caso da Companhia Brasileira de Trens Urbanos contra o município de Belo Horizonte (RE 1.091.113 AgR), no qual foi negada a imunidade tributária à empresa concessionária de serviços de serviços públicos.
A condição subjetiva de “entidade com fins lucrativos” permeou uma grande parte das discussões sobre o tema. Este argumento ressurgiu na jurisprudência do STF com o caso da Sabesp, sociedade de economia mista com fins lucrativos, que buscava o reconhecimento da sua imunidade com base no fato de ser prestadora de serviços públicos. A tese foi rejeitada pelo Supremo, que apontou reconheceu que não caberia estender a imunidade a empresas privadas, com finalidade lucrativa, e ações negociadas em bolsa de valores.
Curiosamente, é possível identificar que um dos casos que provocou um aprimoramento da jurisprudência do STF sobre o tema da imunidade recíproca em relação ao IPTU teve origem no argumento da lucratividade. Ao contrário do que ocorre com a Sabesp, a companhia de saneamento do estado de Sergipe, que é uma sociedade economia mista, obteve o reconhecimento de sua imunidade em relação ao IPTU justamente por não possuir finalidade lucrativa (ACO 3410), em 2022.
Nesse caso (ACO 3410), surgiu um argumento interessante atrelado ao princípio federativo, que coloca a imunidade como uma garantia de que os municípios não podem influir, por meio da tributação, na atuação de outros entes federativos. Dito de outra forma, a tributação pelo IPTU deve ser afastada para evitar que os municípios, por meio da tributação, influam sobre a forma como o estado de Sergipe desenvolve suas políticas de saneamento.
Em relação às concessões, talvez o paradigma mais importante atualmente seja o da CEMIG (RE 1391460), no qual foi reconhecida a imunidade ao IPTU dos bens afetados à prestação do serviço público. Esse julgamento representa uma mudança significativa na jurisprudência do Supremo, que busca, atualmente, estabelecer um limite à aplicação dos precedentes formandos no RE 594.015 e no RE 601.720. No caso, a afetação dos bens à prestação do serviço foi essencial para o reconhecimento da imunidade desses bens em relação ao IPTU.
Além do caso CEMIG, a corte ainda precisará enfrentar a questão da imunidade nos serviços públicos essenciais, remunerados por meio de tarifa, no julgamento do caso da CPTM (Tema 1140). Nesse caso, a discussão deve ter como centro a modalidade de financiamento dos serviços (tarifa) e os impactos do IPTU na sua formação.
A discussão culmina no atual reconhecimento da repercussão geral no caso de ferrovias concedidas e convida a um giro mais amplo para compreensão do regime jurídico das concessões, não só por parte dos tributaristas, mas também para os profissionais do direito administrativo.
A tese evocada pela concessionária de ferrovia indica que a “distribuição de lucros a acionistas e a negociação de ativos em bolsa não alteram a natureza pública do bem e da atividade exercida”. Implica reconhecer que a natureza de um bem público advém de sua função, ultrapassando critérios patrimonialistas que não mais se amoldam a complexo manejo de bens públicos que é fruto de intensa interação entre setor público e privado. O vetor principal dessa abordagem funcionalista, como destaca o professor Floriano de Azevedo Marques Neto, é a afetação que consagra um bem, expressa ou tacitamente, a uma finalidade ou a uma utilidade pública.
Não é demais lembrar que Ministro Edson Fachin, no curso do julgamento do Tema 385/RG (RE 601.720), chegou a ressaltar há relação direta com entre o reconhecimento da imunidade recíproca e a “preservação do sistema federativo, com impactos sobre a prestação de serviços públicos, sobre a modelagem de outorga para o setor privado, assim como sobre a capacidade tributária dos entes municipais”.
É hora de levar a constatação a sério: no direito público, a mão que dá nem sempre é a mão que toma e os efeitos sistêmicos de impulsos arrecadatórios municipais sobre concessões de outros entes federativos podem ter efeitos deletérios sobre aqueles que mais precisam receber serviços públicos ou fruir de infraestruturas essenciais.
*Mariana Avelar, membro da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogado, e Hendrick Pinheiro, Professor de legislação tributária e direito financeiro da UFRJ e consultor da Manesco para assuntos tributários.