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Os entraves das relicitações e as inovações em tempos de crise

Por Mariana Avelar em 3 de agosto de 2023 às 16h21
Mariana Avelar

O ano de 2023 marca a já esperada mudança de entendimento do Governo Federal sobre algumas opções de política pública para os setores de infraestrutura. Um dos institutos que tem apontado para novos rumos é da relicitação. 

Criada pelo pela MP nº. 752/2016, que foi posteriormente convertida na Lei nº. 13.448/2017., a relicitação é uma inovação legislativa que visa estabelecer critérios e procedimentos para uma “devolução amigável” de concessões do setor de infraestrutura de transportes (aeroportos, ferrovias e rodovias). A época coincidiu com o ápice de uma crise que ainda se alastraria por anos e que paralisou investimentos relevantes para o país. A ideia era que a devolução amigável fosse uma alternativa aos tradicionais instrumentos da Lei nº. 8.987/1995 para extinção contratual, que não possuíam a celeridade e flexibilidade que os investimentos urgentes demandavam. 

Porém, passados mais de 7 anos da sua criação, a conclusão do primeiro processo de relicitação só se deu em 2023, com a licitação do Aeroporto de São Gonçalo do Amarante/RN. Essa experiência demonstrou que o longo fluxo do processo de relicitação pode ser um entrave para que alcance seu objetivo.

Nesse contexto, merece especial atenção o fato de que a relicitação é uma inovação legislativa, que possui como finalidade solucionar dificuldades em ativos nos quais os tradicionais instrumentos do Direito Administrativo não pareciam suficientes. A exposição de motivos da MP nº. 752/2016 deixa claro seu teor:

  • “Trata-se de alternativa inovadora de “devolução coordenada e negociada” da concessão, evitando-se o processo de caducidade, muitas vezes moroso e com longa disputa judicial, em que, normalmente, os usuários da concessão são os principais penalizados pela má prestação do serviço até a conclusão do processo.”

Em processos longos, como os que estão em curso, mudam-se as premissas, o cenário político e econômico. Se o que se esperava para o instituto é que fosse mais ágil e menos complexo que um processo de caducidade, o objetivo não está sendo atingido. Talvez seja a hora de olhar com mais flexibilidade para a sua interpretação.

Na fila para a conclusão da relicitação estão ativos de altíssima relevância econômica regional e nacional, como o Aeroporto Internacional de Viracopos/SP, Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro/Galeão – Antônio Carlos Jobim, a BR-040/DF/GO/MG e a Ferrovia Malha Paulista. Porém, logo no início do mandato, algumas pastas do Governo que assumiram em 2023 manifestaram o desejo de não prosseguir com algumas dessas devoluções.

O Aeroporto RioGaleão é o caso que mais demanda respostas rápidas. O ativo foi concedido à iniciativa privada em 2013, mas a queda brusca da demanda projetada para o empreendimento e intensificada pela pandemia da COVID-19 levou a concessionária a ingressar com o processo de relicitação em fevereiro de 2022. 

De outro lado, o desejo do atual Governo Federal é que se possa renegociar os processos de devolução e manter os contratos em vigor.  O tema, como muitos que envolvem o Direito Público na atualidade, está nas mãos do TCU. Isso porque os Ministros de Estado de Portos e Aeroportos e de Estado dos Transportes formularam consulta, em abstrato, a Corte de Contas, sobre os seguintes aspectos:

  • “Se há alguma objeção deste Tribunal de Contas da União ao entendimento de que o caráter irrevogável e irretratável da relicitação se restringe à iniciativa do concessionário? 
  • Quais as balizas técnicas que o gestor deve apontar na sua motivação para o encerramento do processo de relicitação, por iniciativa do Poder Concedente?”

A discussão se pauta, sobretudo, na condicionante prevista no art. 14, §2º, III Lei nº. 13.448/2017 sobre a comprovação, por parte do concessionário, do requisito de apresentar “declaração formal quanto à intenção de aderir, de maneira irrevogável e irretratável, ao processo de relicitação do contrato de parceria, nos termos desta Lei”. Para o Governo Federal, a expressão “irrevogável e irretratável” não é um entrave para que o Poder Concedente possa desistir dos processos em curso.

A resposta da Consulta tem dividido opiniões. A primeira posição do Auditor Federal de Controle Externo (AUFC) da AudRodoviaAviação, área técnica do TCU, foi de que o Poder Concedente se vincula ao processo de relicitação iniciado e que seria uma tarefa árdua encontrar motivação para que fosse interrompido. A solução para as mutações nas situações fáticas ao longo do processo foi que “caso esse processo não tenha êxito, devido ao descumprimento do termo aditivo de relicitação por parte do concessionário ou na hipótese de licitação deserta e/ou decurso do prazo de 24 meses, deve o Poder Público instaurar ou dar continuidade ao processo de caducidade”.

Apesar disso, recomendou que caso a posição do Plenário seja diversa, que ao menos se fixe condicionantes para a desistência. Algumas são mais simples, como a “demonstração da aderência do novo ajuste em relação ao escopo da política pública formulada para o setor pelo ministério competente” e outras são complexas, como a “demonstração da viabilidade econômico-financeira da manutenção da atual concessão, incluindo suas vantagens e desvantagens comparativamente ao prosseguimento regular da relicitação, devendo ser evidenciado o resultado superior alcançado com a celebração de um novo acordo que supere os benefícios esperados com a relicitação”. 

O Diretor da AudRodoviaAviação discordou parcialmente da posição e afirmou que a irrevogabilidade e irretratabilidade não são vinculantes ao Poder Concedente. Para o Diretor, caso as partes acordem pelo retorno das condições contratuais não haveria óbices jurídicos, mas concluiu de forma similar ao Auditor quanto às condicionantes para que isso ocorra.  
Posteriormente, a Auditora-chefe da AudRodoviaAviação discordou dessa segunda posição e aderindo ao entendimento original do auditor de que o cenário financeiro e o passivo regulatório das concessões em processo de relicitação impedem que seja revogado por iniciativa do Poder Concedente.  

O MPjTCU, por sua vez, discordou da área técnica, concordando em essência com o diretor da unidade, entendendo pela viabilidade da desistência, com algumas mudanças nas condicionantes propostas. O MPjTCU reconhece ser muito difícil a retomada da concessão, especialmente considerando as complicações fáticas de cada processo, mas aponta, com razão, que a corte de contas não poderia em tese e a priori impedir “a busca de alternativas para a retomada do pleno atendimento do interesse público”.

Tendo em vista todo esse complexo contexto, o Plenário do TCU iniciou seu julgamento em 5 de julho. O Ministro Vital do Rêgo votou favoravelmente à possibilidade de desistência da relicitação, mas a questão não se encerrou, pois o julgamento foi suspenso após pedido de vista dos Ministros Walton Alencar e Jhonatan de Jesus.  Ainda está em aberto o resultado da consulta, que deve a princípio ser retomada em 09/08/2023, enquanto os ativos (e investimentos) aguardam.

Concordamos que a busca do interesse público deve ser o espírito de toda a interpretação dos contratos de concessões, desde que esse seja considerado em perspectiva ampla – abrangendo desde a modelagem do processo até seu encerramento, seja pelo decurso do prazo seja por motivos de mudança de cenário. Os contratos de concessão são necessariamente incompletos e eventuais correções de rotas são necessárias para sua adequação a eventos futuros e incertos. Tal correção, contudo, deve respeitar legítimas expectativas criadas junto ao privado que se habilitou ao processo de relicitação.

A relicitação é um acordo cujo regime jurídico se encontra disciplinado em lei e que, portanto, possui como essência a consensualidade e a garantia de segurança jurídica na devolução de ativos (com manutenção da continuidade na prestação dos serviços) e a respectiva remuneração de investimentos. Duas faces de uma mesma moeda, ambas necessárias para a superação do déficit de infraestrutura experimentada em nosso país.

O atingimento desses objetivos depende de uma fina calibragem entre flexibilidade e previsibilidade, inclusive sobre eventuais condicionantes para a desistência ocorra. Se as condições impostas forem demasiadamente complexas e demandarem longos novos estudos, é um risco de que seja uma barreira para sua efetivação. 

Além disso, eventuais desistências devem respeitar a boa-fé do concessionário que solicitou a devolução. No caso do RioGaleão, por exemplo, de fato há uma queda significativa da demanda que prejudicou a viabilidade econômico-financeira do empreendimento; de outro lado, se o Poder Concedente altera políticas públicas para fomentar a concessão, há um cenário diferente que pode novamente viabilizar o contrato e que poderia fazer com que as partes entrem em consenso a respeito da desistência do processo relicitatório.

A utilidade da relicitação depende de respostas razoáveis para que se fato sejam instrumentos para proporcionar a retomada de investimentos em setores estratégicos ao desenvolvimento nacional, tão necessários no atual estado da arte da infraestrutura brasileira. Decisões morosas ou inconsistentes nos afastarão desses objetivos.

*Mariana Avelar, Eduardo Stênio e Caroline Batista, membros da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados. 

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