A aprovação da participação da COSCO em terminal de containers do porto de Hamburgo gerou intenso debate sobre a dependência econômica da Alemanha em relação à China. O que podemos aprender com esse caso?
A difícil ponderação entre a facilitação de medidas que resultem em atração de investimento estrangeiro direto e o eventual risco que tais participações possam trazer a independência econômica e política de um país não é assunto novo. Recentemente, contudo, o debate foi reacendido em grandes proporções após as dificuldades logísticas relacionadas à pandemia e à crise energética relacionada à guerra da Ucrânia. Em especial, a chantagem energética promovida por Putin escancarou a dependência europeia (e sobretudo, alemã), do gás russo e motivou um plano de ataque para reestruturação das fontes de energia desse continente.
Mais recentemente, esse tema foi abordado por ocasião da aprovação final, pelo governo alemão, de um acordo que permitirá que a empresa de navegação chinesa COSCO assuma uma participação minoritária em um terminal de contêineres Tollerort no porto de Hamburgo, administrado pela Hamburger Hafen und Logistik AG (HHLA).
Como destacado pela
administração portuária, o terminal HHLA Tollerort é o menor do Porto de Hamburgo em termos de área; apesar disso, há razões para que se considere este um ativo estratégico. O terminal é eficiente e flexível, possuindo sistema de pórtico que permite o manuseamento de comboios de blocos em posição curva e cinco vias com o comprimento de um comboio-bloco. Em suas gruas ocorre carga e descarga de grandes navios
com capacidades de carga até 23.000 TEU.
Restrições à investimentos estrangeiros diretos: o que sabemos do acordo entre COSCO e HHLA?
A aquisição de participação minoritária do terminal de contêiners Tollerort, no porto de Hamburgo, levantou discussões sobre os riscos e benefícios relacionados a tal operação.
O recebimento de investimento direto (investimento direto no país – IDP) é comumente incentivado pelos inegáveis benefícios que estes podem trazer ao desenvolvimento econômico do país que os recebe. Em alguns casos, contudo, a legislação nacional pode estabelecer restrições ou processos de prévia aprovação para realização dessas operações, ponderando tais benefícios com outros valores e interesses a serem protegidos.
Tais normas foram recentemente intensificadas não apenas na Alemanha. Como destacam Eduardo Frade e Mariana Llamazalez Ou, as “regulações de monitoramento de investimentos estrangeiros por diferentes jurisdições ganharam grande força e notoriedade” o que, de acordo com esses autores, pode ser considerado como uma reação a “traumas da pandemia, que envolveram dificuldades de acesso a insumos essenciais por países que dependiam de fornecimento externo, e a incertezas geopolíticas, como a guerra da Ucrânia, que colocaram em xeque conceitos e alianças com as quais diversas nações contavam”.
Em relatório elaborado pela
PWC para descrever as principais disposições da legislação alemã de revisão de investimentos diretos, indicou-se que “na maior parte dos casos, a análise conduzirá à autorização da transação. No caso de uma transação ser considerada susceptível de afetar a ordem pública ou a segurança da República Federal da Alemanha, o Ministério da Economia e Meio Ambiente (Bundesministerium für Wirtschaft und Energie – BMWi), pode autorizá-la mediante condições ou pode, em última análise, proibi-la”.
No caso que analisamos aqui, a proposta inicial apresentada pela COSCO era de aquisição de participação de 35% no terminal Tollerort. A operação foi noticiada e como indicado pelo portal
Politico, a avaliação feita pela Autoridade Federal de Segurança Cibernética (Bundesamtes für sicherheit in der Informationstechnik) entendeu que a operação envolvia acesso à infraestrutura crítica. Por tal razão, a aquisição pretendida pela COSCO estaria sujeita ao mencionado processo de revisão pelo Ministério da Economia que possui poder de barrar o desenrolar das negociações até que sejam esclarecidos detalhes relevantes do investimento pretendido.
Conforme indicado em
comunicado oficial da HHLA, após a empresa e a “COSCO terem chegado a um acordo com o Ministério da Economia e Assuntos Climáticos da Alemanha sobre o conteúdo dos direitos de participação da COSCO no âmbito de uma análise normalizada do investimento, o Governo alemão aprovou agora a participação minoritária”. Indicou-se ainda que “A HHLA e a COSCO finalizarão a transação em breve”.
O processo de análise foi marcado por grande dissenso entre ministérios do governo federal alemão e o Chanceler Olaf Scholz. Conforme apontado pelo
periódico Tagesschau: ,
“No Governo, sobretudo o ministro da Economia, Robert Habeck, e a ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock, defendem uma atitude mais rigorosa em relação à China, que já não é vista apenas como um dos mais importantes parceiros económicos e comerciais da República Federal, mas cada vez mais como uma contraparte e um possível risco de segurança.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, por exemplo, preparou um projeto de estratégia para a China que contém palavras claras para lidar com o regime de Xi Jingping: Mais valores, menos economia ["Mehr Werte, weniger Wirtschaft"]. Em sectores industriais chave, por exemplo, a Alemanha e toda a UE não devem "tornar-se dependentes dos avanços tecnológicos de países terceiros que não partilham os nossos valores".
Apesar das posições contrárias, prevaleceu a posição de aprovação parcial do acordo, capitaneada pessoalmente pelo Chanceler Scholz. Como adiantado, a aprovação de participação ocorreu em percentual de 24,9%, mais que 10% menor que o desejo inicial da COSCO e ainda, indiciou-se que a companhia chinesa não poderá ter quaisquer poderes de gestão ou tomada de decisões estratégicas, como noticiado pela
Reuters.
A aprovação do acordo, como se observa de forma explicita em nota divulgada pela própria
HHLA visa fortalecer a posição da cidade de Hamburgo “como centro logístico nas regiões do Norte e do Mar Báltico e da República Federal da Alemanha como nação exportadora”. De forma mais específica, se está a defender que o acordo não cria quaisquer dependências unilaterais em relação à China, mas funcionaria como importante atrativo para aumentar a competitividade do Porto de Hamburgo em relação às demais alternativas e rotas logísticas à disposição dos carregadores chineses.
A discussão de dependência econômica induzida por investimentos estrangeiros diretos não, é, contudo, o único elefante na sala.
Outros elefantes na sala
Considerando o perfil abrangente de atuação da COSCO, em quase todas as atividades que compõem a cadeia logística, poderiam ter sido levantadas questões de natureza concorrencial que, a princípio, não foram diretamente enfrentadas nos processos de aprovação do investimento pelo governo alemão.
Um relatório elaborado por
Olaf Merk e Antonella Teodoro como parte de um documento de política do Fórum Internacional de Transportes da OCDE afirmou que:
"A integração vertical contínua do setor de transporte de contêineres apresenta novos desafios para a regulamentação da concorrência. As empresas de transporte marítimo podem usar suas isenções da lei de concorrência em muitas jurisdições [com permissões para que as transportadoras utilizassem acordos de cooperação para gerir conjuntamente a capacidade da frota e sua influência como transportadoras] para adquirir vantagens competitivas em mercados onde agora competem diretamente com agentes de carga, prestadores de serviços portuários ou operadores de logística que não têm essas isenções da lei de concorrência."
Ainda segundo o mencionado relatório de Olaf Merk e Antonela Teodoro, a integração vertical não resultou em diminuição dos preços dos fretes marítimos nos últimos anos, de modo que é preciso avançar nas discussões concorrenciais relativas à participação de operadores integrados em portos, para além da mera decisão sobre a possibilidade ou não de se realizar certos investimentos diretos.
O que podemos aprender com a experiência alemã?
Segundo dados extraídos do Índice de Confiança para Investimento Direto Estrangeiro desenvolvido pela Consultoria internacional Kearney e noticiado pelo
portal PRGN, “o Brasil é o sétimo destino mais procurado pelos estrangeiros que querem investir em países emergente”.
Considerando a grande demanda reprimida por investimentos em nosso país, há sempre a sensação de que poderíamos estar mais bem colocados nesse tipo de ranking. E para que haja o incremento saudável das oportunidades de investimento direto é essencial que haja um aumento da confiabilidade em nosso ambiente institucional. A segurança jurídica é fundamental para atração de investimentos em infraestrutura e esse é um ponto facilmente apreensível quando se observa a experiência alemã.
Em relação a análise das normas brasileiras sobre investimentos estrangeiros, devemos considerar que a Constituição brasileira indica que lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro (art.172). O tema foi tratado sobretudo pela Lei nº 14.286/2021, que dispõe sobre a obrigatoriedade da prestação de informações de investimento estrangeiro direto e pelo seu regulamento, a Resolução BCB nº 278, de 31 de dezembro de 2022, emitida pelo Banco Central Brasileiro.
Essa legislação, contudo, não pode ser vista como fonte de entrave aos investimentos diretos estrangeiros. Tal como explicam Eduardo Frade e Mariana Llamazalez Ou, o sistema brasileiro é substancialmente mais liberal que o padrão de notificação obrigatória de certos investimentos, o qual tem sido observado no contexto de vários países da União Europeia e dos Estados Unidos:
“Como regra geral, os investimentos estrangeiros diretos devem obrigatoriamente ser registrados, antes da entrada de recursos no país, no Sistema Registro Declaratório Eletrônico, no módulo Investimento Estrangeiro Direto (RDE-IED), do Banco Central do Brasil (Bacen), e são monitorados também pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
No entanto, não há um sistema de análise ou notificação obrigatória aplicável aos investimentos estrangeiros diretos ou similares, havendo apenas restrições específicas a depender do setor envolvido, como serviços financeiros, atividades rurais, resseguradoras, energia nuclear, serviços postais, indústria aeroespacial, óleo e gás e serviços de comunicação”.
Ainda é cedo para dizer se a postura liberalizante brasileira será mitigada pela tendência internacional de enrijecimento na análise governamental de investimentos diretos. Qualquer medida deve considerar que por aqui, muitos outros procedimentos administrativos acabam por representar custos de transação maiores ou simulares, quando se trata de setores intensamente regulados. Essas peculiaridades nacionais devem ser consideradas antes que se cogite a recepção de tendências normativas estrangeiras.
*Mariana Avelar, membro da Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.