O novo marco legal das ferrovias (Lei nº 14.273/2021) é conhecido sobretudo por ter consolidado a base legal das autorizações ferroviárias, permitindo a outorga de direito privado para exploração de infraestruturas e serviços de transporte ferroviário, setor que antes estava restrito à agentes selecionados por prévia licitação para atuar como concessionários de serviços públicos.
Não negamos que a instituição da autorização ferroviária em nível nacional seja a principal inovação do novo marco, que abre a possibilidade de construção e operação de ferrovias em regime privado, alternativo ao regime público de concessão.
Nas autorizações há mais liberdade e mais responsabilidade por parte dos privados: o risco da operação e dos investimentos é privado e a regulação incidente é, por consequência, mais branda.
A atenção às autorizações não é vã: diante desse novo regime há expectativa de que as autorizações sejam um vetor para expansão das ferrovias na matriz de transporte brasileira. Conforme dados recentemente divulgados pelo Ministério da Infraestrutura, o programa federal de autorizações ferroviárias (“Pró-Trilhos”) chegou à marca de 27 contratos já assinados, com investimentos projetados no montante de R$ 133,24 bilhões.
Nesse texto, contudo, faço o convite para que se faça uma visão panorâmica do novo marco das ferrovias, para reafirmar que ele não se restringe à previsão do regime das autorizações ferroviárias. Vamos então aos cinco pontos do novo marco legal das ferrovias que merecem a sua atenção.
1. Antes da sanção do novo marco, havia uma MP... e a MP não foi convertida em lei
O projeto de lei que originou o novo marco legal das ferrovias foi de iniciativa do Senado e data de 2018. Sua tramitação refletiu os tempos e movimentos típicos da atividade política, sobretudo considerando a multiplicidade dos interesses envolvidos na alteração do regime jurídico dos serviços de transporte ferroviário.
A pressão dos interessados cresceu em virtude da morosidade da tramitação no Senado e foi encampada pelo governo federal, que editou a MP 1065 com o mesmo tema do projeto de lei que estava em curso no Congresso.
A MP apresentou ainda algumas alterações que eram demandadas pelo setor privado.
A pressão funcionou: o Senado aprovou o PLS 261 com diversas alterações propostas no texto da MP 1.065.
Destaca-se que essa aprovação ocorreu dias após o protocolo de diversos pedidos de autorização para construção de ferrovias em regime de direito privado com fundamento nas disposições da MP 1.065: a confirmação do interesse do mercado, com a respectiva promessa de investimentos privados relevantes, incentivou a formação de coalisão entre governo e oposição para aprovação do projeto.
Houve um acordo político para não votação da MP com objetivo de promover a rápida aprovação do novo marco legal pela Câmara dos Deputados. Como? Bastaria que o PL fosse aprovado sem alterações de suas disposições anteriormente definidas pelo Senado e assim foi feito.
A medida evitou o retorno do projeto ao Senado antes da respectiva sanção presidencial, que ocorreu em 23 de dezembro.
O resto dessa história é de conhecimento geral. O novo marco das ferrovias chegou tal qual presente de Natal e fez surgir uma pergunta: o que aconteceria com os pedidos de autorização protocolados à luz da MP 1065? Ainda que a MP e a Lei 14.273/2021 tenham grande semelhança, há pontos de dissidência entre elas.
Um dos principais pontos de diferença entre os diplomas legislativos envolve a competência para prática dos atos durante o processo de autorização.
Na vigência da MP, o Ministério da Infraestrutura era o responsável por receber as propostas, analisar e emitir as autorizações, ficando a ANTT apenas com uma análise de viabilidade locacional dos pedidos.
No novo marco legal, a ANTT tem posição de maior protagonismo na condução do processo – a semelhança do que acontece em outros setores que privilegiam a atuação das respectivas agências reguladoras nesse processo.
Diante desse impasse, algumas soluções têm sido discutidas pelo governo federal. Segundo informações divulgadas pela Agência Infra, a ANTT tem trabalhado na identificação de quais pontos de regulamentação precisam ser implementados para que a ANTT assuma processos em curso sem que se perca o processo anteriormente conduzido pelo Ministério da Infraestrutura.
Que vença a segurança jurídica!
2. Novos entrantes à vista?
Conforme dados divulgados pelo Ministério da Infraestrutura, são esperados novos operadores para logística ferroviária de transportes pois doze das quinze autoras dos projetos autorizados são estreantes no setor: tratam-se de empresas originalmente vinculadas a terminais de uso privados (TUPs) em portos brasileiros ou mesmo os donos da carga desejosos de ingressar no braço logístico ferroviário de seus negócios.
O interesse de outros agentes além das concessionárias em atuação pode ser sinal de diversificação, mas não uma garantia. O novo marco legal flexibiliza uma (de várias) barreiras aos novos entrantes no mercado de transporte ferroviário, qual seja, a ampliação dos regimes de outorga, com alternativas ao rígido regime concessório.
A superação de outras barreiras de entrada que dificultam a maior competitividade no setor depende de uma atuação sistêmica, em nível de política pública e regulação: a lei ajuda mas não faz milagre.
3. A hora e a vez dos investimentos privados em ferrovia
Além da autorização, o novo marco legal das ferrovias objetiva simplificar e conferir maior segurança jurídica ao investimento privado em ferrovias. Os incentivos aparecem em diversos dispositivos, veja:
- Regras claras para a desativação ou a devolução de trechos ferroviários outorgados antes da vigência da Lei nº 13.448, de 5 de junho de 2017 (art.15)
- Uma solução para um antigo problema para o investimento em malha de terceiros ocorre pela positivação legislativa das regras para habilitação de usuário investidor (art 16) e para atuação de investidores associados
- No caso do usuário investidor:
a) há livre pactuação quanto a forma, os prazos, os montantes e a compensação financeira desses investimentos. Regra geral, bastará enviar tais contratos para o regulador para informação e registro.
b) A prévia anuência pelo regulador só deverá ocorrer caso os investimentos previstos impliquem obrigações cujo cumprimento ultrapasse a vigência do contrato outorgado por concessão, revisão do teto tarifário ou outra forma de ônus para o ente público.
c) E em qualquer caso, os direitos e as obrigações previstos no contrato firmado entre o usuário investidor e a operadora ferroviária estendem-se a seu eventual sucessor, nos termos da regulamentação.
- Para investimentos associados
a) As operadoras ferroviárias são autorizadas a receber investimentos de investidores associados para construção, aprimoramento, adaptação, ampliação ou operação de instalações adjacentes, com vistas a viabilizar a prestação ou melhorar a rentabilidade de serviços associados à ferrovia.
b) As condições de investimento são ajustadas contratualmente e o regulador só intervém previamente caso os investimentos obrigações ou amortizações cujo cumprimento ultrapasse a vigência da concessão, .
c) Nesse caso, Os direitos e as obrigações previstos no contrato firmado entre o investidor associado e a operadora ferroviária estendem-se a seu eventual sucessor, nos termos da regulamentação.
d) Diferentemente do regime aplicável ao usuário investidor, é vedada a revisão do teto tarifário ou outra forma de ônus para o ente público no escopo do contrato referido no § 1º deste artigo.
- Previsão de entidade de autorregulação que será entidade associativa constituída pelas operadoras ferroviárias para gerenciar, mediar e dirimir questões e conflitos de natureza técnico-operacional – a exemplo da avaliação e aprovação de rol de seguros e meios alternativos de garantia (art.11)
4. O marco das ferrovias é novo, mas já tem mudanças à vista
A aprovação expressa do projeto de lei do novo marco das ferrovias aconteceu com uma promessa de reabertura de alguns temas polêmicos após a sanção.
Por essa razão espera-se que o governo encaminhe ao Congresso uma nova MP, com pontos que a Câmara desejava alterar na proposta aprovada no Senado.
Considerando o histórico de discussões e divergências entre Câmara e Senado, é provável que essa MP contemple ao menos quatro aspectos, quais sejam:
1) critério de desempate em pedidos de autorização para trechos iguais;
2) publicidade dos pedidos de autorização;
3) regras aplicáveis aos pedidos de autorização de trechos em áreas de influência de concessão ferroviária e
4) Prazo para início de obras de um pedido de autorização.
O profissional da infraestrutura não pode se queixar de tédio.
5. Faxina regulatória
Com tantas mudanças legais, há necessidade de um grande esforço regulatório e de regulamentação.
Além da criação e aprimoramento de regras voltadas às autorizações, há expectativa de um “revogaço” da regulação obsoleta ou que tenha perdido seu fundamento de validade, como é o caso da regulamentação do transporte de produtos perigosos.
No passado o tema estava sob alçada da ANTT, mas o cenário alterou-se bruscamente diante do art. 54 do novo marco legal, que indica que “o transporte de produtos perigosos será realizado em conformidade com a legislação ambiental e com as disposições do autorregulador ferroviário ou, na sua ausência, com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)”.
Esse último tema é para deixar um sabor dos próximos tópicos que discutiremos aqui: há muito trabalho pela frente em prol da ampliação do setor ferroviário. Mas este é o bom combate, aquele que vale a pena ser enfrentado.
Mariana Avelar, advogada na Manesco Advogados, doutoranda em Administração Pública e Desenvolvimento Estratégico e professora na PUC-MG e no Ibmec